NÃO TOQUEIS NOS MEUS UNGIDOS: ELES RESPONDEM
Pr.
Gilson Soares dos Santos
Muitos líderes têm usado a expressão “não se
pode tocar num ungido do Senhor” como sinônimo de imunidade. Muitos agem de
maneira arbitrária, totalmente divorciada do padrão bíblico, no entanto, não
querem que ninguém os critique, usando sempre a “fórmula mágica” de que não se
deve tocar no ungido do Senhor.
É assim que a Bíblia ensina? Quero recorrer a
ajuda de dois professores, servos de Deus, um da linha Pentecostal, Dr. Paulo
Romeiro, o outro, da linha Reformada, Dr. Augustus Nicodemus, ambos respondem à
questão sobre “não tocar no ungido do Senhor”.
Vejamos
o que diz o Dr. Paulo Romeiro sobre o assunto:
Basta alguém questionar a posição doutrinária
ou ética de algum líder religioso para que ele ou seus simpatizantes
imediatamente lancem mão desta frase para se defenderem. Alguém já disse, com
sabedoria, que o poder odeia a crítica, e isto é verdade também no meio
evangélico. Ao afirmar isso, não estamos defendendo aqui a crítica barata,
vingativa, mas, sim, a construtiva, feita de acordo com a Palavra de Deus.
Esta expressão "não toqueis nos meus
ungidos" aparece duas vezes na Bíblia: em 1 Crônicas 16:22 e em Salmos
105:15; ambas as referências são a respeito dos patriarcas, Abraão, Isaque e
Jacó. As duas passagens não se referem a um questionamento ético ou doutrinário
do líder, mas a algum perigo para a integridade física de um ungido de Deus.
Observe o que aconteceu com Abraão em Gênesis 20:1-13. Estando em Gerar, mentiu
ao rei Abimeleque, dizendo que Sara não era sua esposa, a fim de se proteger.
Impressionado com a beleza de Sara, Abimeleque mandou buscá-la para fazê-la sua
esposa. Deus, porém, avisou o rei em sonho durante a noite, dizendo-lhe que
seria punido se tomasse Sara como esposa, o que o levou a desistir do seu
plano. Embora Abimeleque tivesse sido proibido por Deus de tocar no profeta (v.
7) e ungido do Senhor, isto é, de causar-lhe algum dano físico, ele não hesitou
em repreender Abraão por ter-lhe mentido.
Davi também, quando perseguido por Saul e com
oportunidade para matá-lo, limitou-se apenas a cortar-lhe a orla do manto,
explicando com estas palavras o motivo de seu comportamento: "O SENHOR me
guarde de que eu faça tal cousa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão
contra ele, pois é o ungido do SENHOR" (1 Sm 24:6). Vemos novamente que o
que estava em questão era a vida de Saul e não sua posição doutrinária.
No Novo Testamento, a unção não é privilégio
apenas de alguns, mas de todos os que estão em Cristo. Na sua primeira epistola
universal, João mesmo reconheceu isso ao escrever: "E vós possuís unção
que vem do Santo, e todos tendes conhecimento" (1 Jo 2:20). João
acrescenta ainda: "Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes
permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como
a sua unção vos ensina a respeito de todas as cousas, e é verdadeira, e não é
falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou" (1 Jo 2:27).
É verdade que Jesus disse no Sermão do Monte:
"Não julgueis, para que não sejais julgados" (Mt 7:1). Este é um
outro texto muito usado de forma seletiva e fora de seu contexto como um escudo
contra qualquer tipo de questionamento. O que Jesus está censurando nesta
passagem é o julgamento hipócrita, algo que ele deixa bem claro nos versículos
3 a 5: "Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas
na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o
argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a
trave do teu olho e então verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu
irmão". Pode-se constatar que o apóstolo Paulo tinha o cuidado de obedecer
às palavras do Senhor Jesus pela sua exortação aos coríntios: "Mas esmurro
o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não
venha eu mesmo a ser desqualificado" (1 Co 9:27).
A Bíblia não proíbe o questionamento, pelo
contrário, encoraja-o. Quando chegou a Beréia, Paulo teve seus ensinos
avaliados à luz das Escrituras pelos bereanos. É interessante que os bereanos
não foram censurados nem tidos como carnais porque examinaram os ensinos de
Paulo, mas, sim, foram elogiados e considerados mais nobres que os de
Tessalônica (At 17:11). Observe a atitude de João. Apesar de ser conhecido como
o apóstolo do amor e de usar termos muito amorosos (como "filhinhos",
"amados"), ele não deixou de alertar seus leitores quanto aos perigos
de ensinos e profetas falsos com essas palavras: "Amados, não deis crédito
a qualquer espírito: antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque
muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora" (1 Jo 4:1).
(Romeiro. Paulo, Evangélicos em crise: decadência doutrinária na igreja brasileira. 4ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999).
Agora,
vejamos o que diz o Dr. Augustus Nicodemus sobre essa questão:
“Não toqueis no ungido do Senhor”
Há várias passagens na Bíblia onde aparecem
expressões iguais ou semelhantes a esta acima.
"A ninguém permitiu que os oprimisse;
antes, por amor deles, repreendeu a reis, dizendo: Não toqueis nos meus
ungidos, nem maltrateis os meus profetas" (1Cr 16:21-22; cf. Sl 105:15).
Todavia,
a passagem mais conhecida é aquela em que Davi, sendo pressionado pelos seus
homens para aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna, respondeu:
"O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu
estenda a mão contra ele [Saul], pois é o ungido do Senhor" (1Sm 24:6).
Noutra
ocasião, Davi impediu com o mesmo argumento que Abisai, seu homem de confiança,
matasse Saul, que dormia tranquilamente ao relento: "Não o mates, pois
quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente?"
(1Sm 26:9). Davi de tal forma respeitava Saul, como ungido do Senhor, que não
perdoou o homem que o matou: “Como não temeste estender a mão para matares o
ungido do Senhor?” (2Sm 1:14).
Esta relutância de Davi em matar Saul por ser
ele o ungido do Senhor tem sido interpretado por muitos evangélicos como um
princípio bíblico referente aos pastores e líderes a ser observado em nossos
dias, nas igrejas cristãs. Para eles, uma vez que os pastores, bispos e
apóstolos são os ungidos do Senhor, não se pode levantar a mão contra eles,
isto é, não se pode acusa-los, contraditá-los, questioná-los, criticá-los e
muito menos mover-se qualquer ação contrária a eles. A unção do Senhor
funcionaria como uma espécie de proteção e imunidade dada por Deus aos seus
ungidos. Ir contra eles seria ir contra o próprio Deus.
Mas, será que é isto mesmo que a Bíblia
ensina?
A expressão “ungido do Senhor” usada na Bíblia
em referência aos reis de Israel se deve ao fato de que os mesmos eram
oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo mediante a
unção feita por um juiz ou profeta. Na ocasião, era derramado óleo sobre sua
cabeça para separá-lo para o cargo. Foi o que Samuel fez com Saul (1Sam 10:1) e
depois com Davi (1Sam 16:13).
A razão pela qual Davi não queria matar Saul
era porque reconhecia que ele, mesmo de forma indigna, ocupava um cargo
designado por Deus. Davi não queria ser culpado de matar aquele que havia
recebido a unção real.
Mas, o que não se pode ignorar é que este
respeito pela vida do rei não impediu Davi de confrontar Saul e acusá-lo de
injustiça e perversidade em persegui-lo sem causa (1Sam 24:15). Davi não iria
matá-lo, mas invocou a Deus como juiz contra Saul, diante de todo o exército de
Israel, e pediu abertamente a Deus que castigasse Saul, vingando a ele, Davi
(1Sam 24:12). Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por
chegar, quando o próprio Deus haveria de matá-lo por seus pecados (1Sam
26:9-10).
O Salmo 18 é atribuído a Davi, que o teria
composto “no dia em que o Senhor o livrou de todos os seus inimigos e das mãos
de Saul”. Não podemos ter plena certeza da veracidade deste cabeçalho, mas
existe a grande possibilidade de que reflita o exato momento histórico em que
foi composto. Sendo assim, o que vemos é Davi compondo um salmo de gratidão a
Deus por tê-lo livrado do “homem violento” (Sl 18:48), por ter tomado vingança
dos que o perseguiam (Sl 18:47).
Em resumo, Davi não queria ser aquele que
haveria de matar o ímpio rei Saul pelo fato do mesmo ter sido ungido com óleo
pelo profeta Samuel para ser rei de Israel. Isto, todavia, não impediu Davi de
enfrentá-lo, confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus contra ele, e
entregá-lo nas mãos do Senhor para que ao seu tempo o castigasse devidamente
por seus pecados.
O que não entendo é como, então, alguém pode
tomar a história de Davi se recusando a matar Saul, por ser o ungido do Senhor,
como base para este estranho conceito de que não se pode questionar,
confrontar, contraditar, discordar e mesmo enfrentar com firmeza pessoas que
ocupam posição de autoridade nas igrejas quando os mesmos se tornam
repreensíveis na doutrina e na prática.
Não há dúvida que nossos líderes espirituais
merecem todo nosso respeito e confiança, e que devemos acatar a autoridade
deles – enquanto, é claro, eles estiverem submissos à Palavra de Deus, pregando
a verdade e andando de maneira digna, honesta e verdadeira. Quando se tornam
repreensíveis, devem ser corrigidos e admoestados. Paulo orienta Timóteo da
seguinte maneira, no caso de presbíteros (bispos/pastores) que errarem:
"Não aceites denúncia contra presbítero,
senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas. Quanto aos
que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os
demais temam" (1Tim 5:19-20).
Os “que vivem no pecado”, pelo contexto, é uma
referência aos presbíteros mencionados no versículo anterior. Os mesmos devem
ser repreendidos publicamente.
Mas, o que impressiona mesmo é a seguinte
constatação. Nunca os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a “imunidade da
unção” quando foram acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios
crentes. O melhor exemplo é o do próprio apóstolo Paulo, ungido por Deus para
ser apóstolo dos gentios. Quantos sofrimentos ele não passou às mãos dos
crentes da igreja de Corinto, seus próprios filhos na fé! Reproduzo apenas uma
passagem de sua primeira carta a eles, onde ele revela toda a ironia, veneno,
maldade e sarcasmo com que os coríntios o tratavam:
"Já estais fartos, já estais ricos; chegastes a reinar sem nós;
sim, tomara reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco.”
Porque a mim me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar,
como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo,
tanto a anjos, como a homens.
Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e
vós, fortes; vós, nobres, e nós, desprezíveis.
Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e
não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias
mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos;
quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser
considerados lixo do mundo, escória de todos.
Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos
admoestar como a filhos meus amados. Porque, ainda que tivésseis milhares de
preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo
evangelho, vos gerei em Cristo Jesus. “Admoesto-vos, portanto, a que sejais
meus imitadores" (1Cor 4:8-17).
Por que é que eu não encontro nesta queixa
de Paulo a repreensão, “como vocês ousam se levantar contra o ungido do
Senhor?” Homens de Deus, os verdadeiros ungidos por Ele para o trabalho
pastoral, não respondem às discordâncias, críticas e questionamentos calando a
boca das ovelhas com “não me toque que sou ungido do Senhor,” mas com trabalho,
argumentos, verdade e sinceridade.
“Não toque no ungido do Senhor” é apelação de
quem não tem nem argumento e nem exemplo para dar como resposta.
(http://tempora-mores.blogspot.com.br/search?q=n%C3%A3o+toqueis+nos+meus+ungidos - Acesso em
23/08/2013.)