Não se trata puramente de dar conhecimento a fatos vindouros. Apocalípse na verdade fala muito mais sobre a Igreja de Cristo hoje, seu caráter, sua vida e Missão. Gostaria assim que lêssemos Apocalípse, capítulo 3.
Apoc 3:15-17:
“Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio, ou quente. Assim porque és morno, e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca; pois dizes estou rico e abastado e não preciso de cousa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu”
As cartas de Jesus às Igrejas da Ásia possuem duas funções básicas.
A primeira é revelar os critérios pelos quais o Senhor julga a Sua Igreja. Nós a julgamos por valores externos, visíveis e contábeis: seu templo e número de membros, sua estrutura administrativa e exposição social, seus líderes e seu culto. Como canta o coral e como prega o pastor.
Os critérios de Jesus são bem mais particulares e giram em torno de valores mais eternos do que passageiros;
Charles Kerman, filósofo cristão, diz que “nada do que tocamos é eterno”. E Jesus, quando olha para as igrejas de Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia trata de valores eternos. Em nenhum momento usa como crivo de julgamento a estrutura física e visível da igreja mas trata sim do pecado que a assedia, a fidelidade perante as provações, a pregação do evangelho no mundo e a resistência aos ataques do diabo. Jesus prepara aqui uma Igreja para viver a eternidade.
A segunda função básica das cartas às igrejas na Ásia é justamente nortear nossa jornada hoje.
Apesar de Apocalipse ser um livro com cores escatológicas, é altamente existencial tratando do cotidiano do povo de Deus neste mundo.
O verso 15 do texto que lemos fala sobre a possibilidade de uma Igreja ser quente, fria ou morna e erroneamente tem sido visto ao longo de anos como uma simples apresentação de três diferentes níveis de espiritualidade. Se o analisarmos cuidadosamente, entretanto, veremos que o assunto tratado é a funcionalidade da Igreja, seu modus operandi, o que ela faz baseado em quem ela reconhece ser.
Esta carta começa afirmando “conheço as tuas obras” (3:15) apontando para a vida funcional, prática e efetiva da Igreja e continua dizendo:
“Que não és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente...”
E esta é basicamente uma afirmação de desejo. O Senhor Jesus afirmando à Igreja em Laodicéia que desejava que fossem quentes ou frios. Não há indícios para crermos que fosse uma expressão de ironia mas sim um desejo sincero de vê-los tanto quentes quanto frios.
Para entendermos esta afirmação precisamos lembrar que Laodicéia, pequena cidade, localizava-se entre outras duas grandes e conhecidas cidades na região. Ao norte Hierápolis e ao sul Colossos.
Hierápolis era conhecida em toda a região por suas fontes de águas frias. Era uma espécie de Oásis no verão para onde as multidões afluíam. Segundo Orgeon , à entrada da cidade havia uma inscrição com os dizeres: “Lugar de Refrigério”.
Colossos ao sul era ainda mais conhecida pelas suas fontes de águas quentes, sobre as quais dizia-se possuírem poderes medicinais e terapêuticos usadas por pessoas com problemas ósseos, reumáticos, respiratórios e tantos outros. Um lugar de cura e terapia do corpo.
Quando o Senhor afirmou à igreja: “que nem és frio nem quente” poderíamos parafrasear: Que nem possuis função de causar refrigério às vidas que os procuram como as águas frias de Hierápolis; como também perdestes a função terapêutica de alívio aos aflitos à semelhança das águas quentes de Colossos. Como sois mornos (e águas moras não possuem função) estou a ponto de vomitar-te da minha boca.
Jesus mostrava assim que em Seu Reino a Igreja deveria possuir uma função kerygmática. De levar o evangelho até a última fronteira.
Permitam-me propor-lhes alguns conceitos norteadores da caminhada desta Igreja na visão de Jesus para o Seu Reino, a partir do exemplo de Laodicéia.
1. No Reino de Deus o caráter precede a Missão
A vinda do Reino entre todos os povos começa sempre a partir de um movimento particular antes de chegar às massas. Começa a partir de um coração que espelha o senhor Jesus.
Muitas vezes nos impressionamos com homens, ministérios e histórias que não impressionam a Deus. E isto acontece porque o critério pelo qual o Senhor Jesus julga a sua Igreja é muito mais particular do que público. Por isto sabemos biblicamente que Missões não é uma ação definida em termos de resultados mas sim de fidelidade ao Senhor. Entretanto em nossa recente história das missões no Brasil ainda cultuamos mais os resultados do que o caráter.
No verso 15 quando o Senhor Jesus, escrevendo à Igreja em Laodicéia diz, “conheço as tuas obras”, o texto utiliza a expressão “erga” (de “ergon”) para “obras”.
Poderia ter utilizado “energema” se desejasse enfatizar a vida pública, e não particular da Igreja. Ou ainda “euergeteo” se o objetivo fosse enfatizar a sua vida comunitária.
Entretanto “erga” se refere a atos puramentes pessoais, à vida particular. Não se trata de grandes realizações ou façanhas mas sim da rotina da vida diára. Em outras palavras Ele estaria dizendo: conheço a sua vida, seus pensamentos e suas tendências. Conheço a sua rotina fora do templo. Conheço o seu caráter.
Como podemos avaliar o nosso esforço missionário ? A partir dos resultados na transmissão da Palavra ou da fidelidade em vivê-la e transmiti-la ?
Creio que nós não fomos chamados simplesmente a converter as nações mas sim a viver a fé que pregamos. É o que mostra-nos 1 Coríntios 4:9 quando o texto afirma que os “apóstolos” (representando a Igreja que avançava) eram postos em “último lugar”, como se “condenados à morte”. E termina dizendo que “nos tornamos espetáculo ao mundo, tanto a anjos quanto a homens”.
O termo para “espetáculo” neste verso é “theatron” de onde temos a palavra “teatro” em português. “Theatron” literalmente significava “estar em um palco sendo observado”. A idéia é de um grupo teatral se apresentando em um palco iluminado por tochas que eram postas ao seu redor. Cada palavra dita, gesto realizado, movimento ou intenções estavam sendo cuidadosamente observados pelo auditório.
A verdade simples e contundente que sai deste texto é que você e eu, a Igreja de Jesus Cristo, estamos sendo observados, e não apenas por homens mas também por anjos. A ênfase desta afirmação portanto não é simplesmente kerigmática, defendendo uma Igreja que existe para apenas proclamar o evangelho de forma inteligível, mas sim martírica: uma comunidade de santos que, antes de mais nada, foi chamada para falar, viver, agir e reagir de acordo com o caráter de Jesus. O verso não fala a respeito de salvação mas sim de testemunho.
Tiago 4:8 também nos adverte para que não sejamos uma Igreja com “ânimo dobre” e para “dobre” usa a expressão grega “dipxoi” (di-dois; pxoi – almas) : duas almas. Fala portanto a respeito de alguém que possui um corpo mas duas almas. Uma alma quer Deus e a outra deseja o mundo. Uma grita “glória a Deus” durante o ardente momento de louvor e a outra caminha negociando a verdade e a justiça no dia a dia do seu trabalho. Uma fala de santidade, a outra de mundanismo.
Ele nos alerta assim exortando-nos a sermos um homem com apenas uma alma. Que deseja apenas a Deus, Sua verdade e justiça. A glória do Seu nome.
Missões portanto não é um empreendimento que pode ser medido pelos resultados alcançados mas deve ser definido pela fidelidade na comunicação do amor de Deus ao mundo, e portanto não é a competência mas sim a vida e caráter que definirão a obra a ser realizada.
O caráter precede a Missão. E se isto é verdade precisamos, em nossas igrejas locais e escolas se Missões fazer mais do que treinar missionários. Precisamos fazer discípulos.
2. No Reino de Deus a obediência determina o avanço
Logo após o Senhor Jesus afirmar que Laodicéia era uma Igreja disfuncional, Ele apresenta o motivo no verso 17: “pois dizes: estou rico e abastado e não preciso de cousa alguma”.
O motivo da disfuncionalidade daquela Igreja na Ásia era o pecado, e neste caso a soberba.
O pecado possui a habilidade de nos incapacitar temporariamente, de inibir a nossa funcionalidade e de obscurer a nossa Missão. O pecado produz uma Igreja estéril.
E perante isto percebemos que apenas a obediência ao Senhor construirá uma Igreja que irá até a última fronteira. Em toda a história da expansão da Igreja vemos que somente a obediência, e não a tecnologia ou recursos financeiros, determinou o seu avanço. Para avançar e transpor barreiras é necessário obedecer.
Vejamos quais barreiras temos perante nós ainda hoje.
Desafio Étnico.
Desafio Linguístico.
Desafio Missiológico.
Fomos bombadeardos positivamente desde a década de 80 por uma missiologia que priorizava alcançar os não alcançados. Neste afã começamos a concentrar-nos como Igreja e Agências Missionárias na lista dos PNAs. E hoje, desde que Ralph Winter primeiramente listou os 13.000 povos não alcançados nos anos 80, este número baixou para 2.227 e há quem pense que é ainda menor. Entretanto, de acordo com os relatórios de crescimento da Igreja da World Mission International podemos notar que o evangelho apenas arranhou a superfície social em pelo menos 4.000 destes povos. Entre estes menos de 2% da população conhece a Jesus e não há registro de grandes avanços.
Para ultrapassar tais barreiras é necessário obedecer. No dia 13 de agosto de 1727 houve um avivamento missionário entre um grupo de Checos refugiados na Saxônia (atual Alemanha) , chamados de Morávios. O líder daquele movimento era Nicolas Von Zinzendorf e esta pequena igreja enviou missinários para todos os continentes da terra e mudou o rumo da nossa história. Já ao fim deste movimento Zinzendorf desejou fortemente enviar um missionário para alcançar os esquimós no Ártico e decidiu desafiar o oleiro da aldeia. Um homem de meia idade, solteiro, que fazia vasos de barro para viver. Mas Zinzendorf não tinha mais dinheiro e nem uma equipe para enviar com ele como fizera no passado. Após orar ele o chamou em um fim de tarde e disse: “Creio que é vontade do Senhor que alcancemos os esquimós e quero lhe desafiar a ser este missionário. Não temos dinheiro para lhe dar portanto, se aceitar você irá como peregrino e com certeza, pela distância e dificuldade de chegar à região, não creio que jamais poderá regressar”.
Aquele oleiro pensou por um momento e disse: “Falar de Jesus ? Se você puder me dar um par de sapatos usados, amanhã cedo eu irei”. Imagino que aquele homem estivesse descalço e sua única exigência ao dar a sua vida à causa de Jesus foi um par de sapatos usados. Hoje, mais de 50% dos esquimós são crentes no Senhor Jesus.
A obediência determina o avanço.
3. No Reino de Deus o sacrifício prepara a terra para o plantio.
O versículo 20 tem sido usado muitas vezes como ilustração evangelística:
“Eis que estou a porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo”.
Na verdade este é um convite à Igreja e não ao descrente. Um convite para a comunhão com Jesus. Entretanto comunhão com Jesus implica muitas vezes em sacrifício necessário pela simples necessidade de abstinência daquilo que não combina com o Mestre.
Para ultrapassarmos as barreiras que temos perante nós, sejam urbanas ou tribais, linguísticas ou culturais, de caráter ou de preparo, precisamos levar em consideração a possibilidade do sacrifício cristão.
Isto aconteceu em Atos no capítulo 8 quando a Igreja sofreu na primeira grande arrancada em direção à proclamação do evangelho além fronteiras.
No verso 1 Lucas diz que houve grande “perseguição” à igreja e usa para isto a palavra grega “Diogmos”, que está ligada ao sofrimento físico: causar dores, fazer sofrer. Expunha um ataque físico no qual os crentes eram açoitados e mortos.
No verso 2 ele diz que houve grande “pranto” a respeito de Estêvão e para “pranto” ele usa o termo “Kopeton” que significa literalmente “bater no peito” e indica um sofrimento Emocional. Era a Igreja angustiada e deprimida pela cruel perseguição.
No verso 3 Lucas afirma que Saulo “assolava” a Igreja usando para isto um termo grego derivado de “Lumaino” que aponta para a destruição espiritual. É o mesmo termo usado em João 10:10 em que lemos que o diabo veio “roubar, matar e... destruir”.
A Igreja sofria fisica, emocional e espiritualmente, mas crescia. Com certeza ela nunca, conscientemente buscou o sacrifício, mas estava pronto para passar por ele quando o momento chegasse. Kermann afirma que “o sacrifício precede os grandes avanços” e em Atos 8, na dolorosa dispersão da Igreja, o evangelho avançou.
Os blocos de resistência que temos perante nós hoje,
O Cristianismo não ultrapassará estas barreiras sem sacrifício.
Estive recentemente visitando uma região próxima a Maraã no coração da Amazônia onde vivem os Kambeba, Kokama e Miranha. Eram tidos, até pouco tempo atrás, como grupos indígenas ainda não alcançados pelo evangelho. Tamanha foi minha surpresa ao chegar entre eles e ver ali a presença de uma forte igreja evangélica, que louva a Deus com fervor e amor. Procurando os autores daquele trabalho missionário nos apontaram alguns crentes ribeirinhos, especialmente o Sr. João, como é conhecido. Fui entrevistá-los. Pessoas simples, alguns ainda iletrados, mas com tremenda paixão pelo Senhor Jesus. Viviam em um “flutuante” formado por um cômodo apenas e, além das redes, possuiam somente uma cadeira e uma panela. Contaram-me então como, através do escambo e comércio com os indígenas, conseguiram lhes transmitir o evangelho e plantar ali uma forte igreja.
Perguntei-lhes: “Mas como vieram parar aqui, em região tão distante ?”
Em 1876 Don Capricio, bispo católico romano, ministrava a palavra inicial na convenção regional hospedada em Taranto, sul da Itália, quando afirmou que ‘A Missio Dei, pela sua supremacia bíblica, dispensa a Missão da Igreja. Somos apenas contempladores das maravilhas do Deus que faz ’. Apesar da ênfase deísta gostaria de, após 125 anos, contestar esta proposta eclesio-missiológica que se apoderou etogenicamente da nossa consciência cristã pós-moderna. A Igreja não é um membro contemplativo do Reino de Deus, excluída da Missio Dei e chamada a ser exangue, alienada, sem vida e sem paixão. Ela é parte do Projeto de Redenção escrito pelo Senhor para a salvação de todo aquele que crê.
Don Capricio, entretanto não se distancia muito da errática tendência cristã atual que tenta incluir-se nas bênçãos do evangelho e se auto-excluir de sua prática: a antibíblica vontade de ver a terra arada sem por as mãos no arado. De pregar o evangelho sem crer na possiblidade do sacrifício.
O sacrifício prepara a terra para o plantio.
Conclusão
Em 1784, após lerem a biografia do missionário David Brainard, o estudante Wiliam Carey foi chamado por Deus para alcançar os Indianos. Saiu da Inglaterra, na viagem de navio sua esposa engravidou e deu a luz antes de chegar à India em uma viagem que durou mais de 12 meses em alto mar. Foi um dos maiores missionários que a História registra e traduziu porções do Novo Testamento para mais de 20 línguas.
Em 1852 Deus falou ao coração de um jovem franzino e não muito saudável para se dispor ao trabalho transcultural em um país idólatra e selvagem. Vários irmãos de sua igreja tentavam dissuadí-lo dizendo: “para que ir tão longe se aqui na América do Norte há tanto o que fazer ?” Ele preferiu ouvir a Deus e foi. Seu nome é Simonton que veio ao Brasil e fundou a Igreja Presbiteriana do Brasil tendo chegado aqui no dia 12 de agosto de 1859.
Em 1945 Deus levantou uma mulher também na América. Solteira, baixinha e inexperiente ela veio ao Brasil e embrenhou-se na floresta Amazônica onde desejava evangelizar um rio, chamado Içana. Seu nome é Sofia Muller, missionária da Novas Tribos do Brasil. E Deus deu-lhe forças. Percorreu aquele rio durante décadas, alcançou a tribo Baniwa, Kuripako e traduziu o Novo Testamento para o Kuripako. Como usava todo o seu tempo em terra para o evangelismo ela o traduziu enquanto viajava de canoa de aldeia em aldeia durante mais de duas décadas. Hoje, uma vez por ano, todas as tribos convertidas se encontram para louvar a Deus por ter levantado Sofia Muller para lhes trazer o evangelho. A Funai afirmou recentemente que este é um dos pouquíssimos lugares na Amazônia onde os indígenas não enfrentam problemas com alcoolismo, conflitos e guerras.
Há duas coisas em comum entre Carey, Simonton e Sofia Muller. Todos registraram em seus diários e biografias um desejo apaixonante de fazer diferença na terra e compartilhavam a teologia da expansão do Reino até aos confins do mundo.
Não se contentavam apenas em susbsistir neste mundo vendo a vida passar. Criam que, em Deus, é possível mudar o óbvio, tranpor o impossível e fazer diferença em vida. Criam que fomos criados para levar o nome de Jesus até a última fronteira conhecida. Gostaria que também crêssemos assim. A Deus toda glória.
(Extraído do Site do Autor: http://www.ronaldo.lidorio.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=36&Itemid=52)