Rev.
Gilson Soares dos Santos
Quero,
neste espaço, transcrever a famosa alegoria da caverna, ou mito da caverna, que
é uma ilustração que todos deveriam conhecer. Transcrevo a alegoria contada
pelo personagem Alberto do livro “O Mundo de Sofia”, em seguida, transcrevo a
alegoria como ela é no Livro “A República” de Platão.
A ALEGORIA DA CAVERNA
Platão conta uma
alegoria que ilustra precisamente esta reflexão. Denominamo-la a alegoria da
caverna. Vou contá-la com as minhas próprias palavras. Imagina homens que vivem
numa caverna subterrânea. Estão virados de costas para a entrada, presos com
correntes, pelas mãos e pelos pés; por isso só podem olhar para a parede da caverna.
Por detrás deles há um muro alto, e atrás desse muro passam por sua vez vultos humanos
que levam diversos objetos por cima do muro. Uma vez que atrás desses objetos
arde uma fogueira, eles provocam sombras trêmulas na parede da caverna. A única
coisa que os homens da caverna podem ver é, portanto, este "teatro de
sombras". Estão ali desde que nasceram e para eles as sombras são tudo o
que existe.
Imagina agora que um
destes habitantes da caverna consegue libertar-se da prisão. Primeiro,
questiona-se de onde é que vêm estas imagens na parede da caverna. O que é que
achas que sucede quando ele se volta para as figuras que são levadas por cima
do muro? De início, fica ofuscado pela luz brilhante. A visão dos objetos com
contorno nítido ofusca-o - até então, ele vira apenas as suas sombras. Se
pudesse subir pelo muro e passar o fogo até sair para fora da caverna, ficaria
ainda mais encandeado. Mas depois de ter esfregado os olhos veria também como
tudo é belo.
Pela primeira vez,
veria cores e contornos nítidos. Veria animais e flores verdadeiros - dos quais
as figuras na caverna eram cópias. Mas nesse momento, perguntar-se-ia de onde é
que os animais e as plantas vêm. Vê o sol no céu e compreende que o sol dá vida
às flores e aos animais na
natureza, da mesma forma que o fogo da
caverna fazia com que ele pudesse ver as sombras.
O feliz habitante da
caverna poderia sair a correr para a natureza e alegrar-se com a sua liberdade
recém adquirida. Mas ele pensa em todos aqueles que ainda estão na caverna. Por
isso, regressa. Logo que chega lá, tenta explicar aos outros habitantes da
caverna que as sombras na parede são apenas cópias trêmulas de coisas verdadeiras,
mas ninguém acredita nele. Eles apontam
para a parede da caverna e afirmam que o que
aí vêem é tudo o que existe. Por fim, matam-no.
Aquilo que Platão
descreve na alegoria da caverna é o percurso do filósofo, desde as opiniões
confusas até às ideias reais por detrás da natureza. Pensa também em Sócrates,
que os "habitantes da caverna" assassinaram por destruir as opiniões
habituais e por lhes querer mostrar o caminho para o verdadeiro conhecimento.
Desta forma, a alegoria da caverna torna-se uma imagem da coragem e da
responsabilidade pedagógica do filósofo.
Para Platão, a
relação entre a escuridão da caverna e a natureza lá fora corresponde à relação
entre os objetos da natureza e o mundo das ideias. Ele não queria dizer que a
natureza era escura e triste, mas que ela é escura e triste em comparação com a
claridade das ideias.
(Do Livro: “O Mundo
de Sofia” de Jostein Gaarder)
A ALEGORIA DA CAVERNA
Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa
natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada
subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens
estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não
podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os
impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina
que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada
ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro,
semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e
por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco – Estou vendo.
Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que
transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e
animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses
transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates — Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa
tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus
companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna
que lhes fica defronte?
Glauco — Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante
toda a vida?
Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros,
não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco — É bem possível.
Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre
que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse
diante deles?
Glauco — Sim, por Zeus!
Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão
às sombras dos objetos fabricados?
Glauco — Assim terá de ser.
Sócrates — Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se
forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte
um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a
voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos
estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os
objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe
vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da
realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim,
mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas,
a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via
outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais verdadeiras.
Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não
ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar
e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe
mostram?
Glauco - Com toda a certeza.
Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a
subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado
até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências?
E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho,
distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os
objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras;
em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas
águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a
claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os
corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens
refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu
verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.
Glauco - Necessariamente.
Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é
ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de
certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na
caverna.
Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria
que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não
achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem
recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem
das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou
em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar
a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros,
são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil
vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas
ilusões e viver como vivia?
Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de
viver dessa maneira.
Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai
sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se
afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco - Por certo que sim.
Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os
prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas
sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham
recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não
fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou
com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se
alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se
pudesse fazê-lo?
Glauco - Sem nenhuma dúvida.
Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por
ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a
vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol.
Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a
considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te
enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus
sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo
inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas
não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e
belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo
inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é
preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso
compreendê-la.
(Platão. A República.
Livro VII)