Gilson Soares dos Santos
Antes do nascimento da filosofia, os gregos
depositavam suas crenças na educação e na formação espiritual trazida pelos
poetas. O helenismo buscou alimento espiritual predominantemente nos poemas de
Homero, A Ilíada e a Odisseia, e na Teogonia de
Hesíodo. Para sermos mais claro, os gregos depositavam sua crença nas
narrativas mítico-fantásticas, que chamamos de mitos.
Um dos mitos gregos mais conhecidos é o que
conta a criação da primeira mulher e a entrada do mal no mundo, o mito de
Pandora, ou a Caixa de Pandora. Esse mito explica que todas as desgraças que
existem no mundo e todas as maldades que reinam no coração do homem, inclusive
os sete pecados capitais, foram resultados de uma vingança de Zeus sobre os
homens, quando Prometeu, o deus criador do homem (macho) roubou-lhe o fogo,
trazendo-o aos homens.
Neste post quero
transcrever esse mito, direto do Livro “As 100 melhores histórias da
mitologia”, de A. S. Franchini e Carmen Seganfredo.
Obs.: Zeus é o deus supremo na mitologia grega. Na mitologia romana ele recebe o nome de Júpiter. Na narrativa abaixo você encontrará Zeus sendo chamado de Júpiter, que é o nome dele na mitologia greco-romana.
A CAIXA DE PANDORA
Epimeteu era irmão de Prometeu, o titã que
modelou o primeiro homem do barro. No entanto, este, por desavenças com
Júpiter, acabara por incorrer na sua ira.
Temendo que Júpiter viesse a querer se vingar
dele ou do gênero humano, Prometeu decidiu um dia alertar o seu desavisado
irmão:
— Epimeteu, tome cuidado com os presentes que
receber de Júpiter — disse Prometeu, chamando-o para um canto. — Já há algum
tempo que ele anda furioso comigo, porque ousei roubar o fogo dos céus para
levá-lo aos homens.
Epimeteu escutou com atenção as palavras
judiciosas do irmão e logo as esqueceu com o mesmo empenho.
Enquanto isso, no Olimpo, Júpiter já havia
ordenado a Vulcano — que tinha também as suas veleidades de artífice — que
criasse uma nova criatura, uma parelha para o homem.
— Deixa comigo — disse o deus das forjas.
Fechando-se em sua fuliginosa oficina com a
deusa Minerva, os dois entregaram-se com extraordinário denodo à interessante
tarefa. Decorrido algum tempo, a obra estava pronta.
— Nunca nada de mais perfeito saiu de suas
talentosas mãos, excelente Vulcano! — disse Minerva, entusiasmada.
— Graças a você, cara amiga, que me auxiliou
com seus proveitosos conselhos! — disse Vulcano, devolvendo o elogio.
Diante dos dois estava um linda mulher, quase
tão bela quanto a mais bela das deusas. Seus olhos era azuis como o mais
límpido céu e de sua boca vermelha e úmida partia um hálito fresco e perfumado.
Sua pele era macia como o mais macio dos veludos e recobrindo-a por inteiro
havia ainda uma delicada penugem, que lembrava em tudo a maciez da casca do
pêssego.
Seus membros, por sua vez, eram delicadamente
proporcionados, tendo sido exilada deles à força, em proveito da graça. A
frente do peito da encantadora criatura, Minerva coloca-a dois pomos que tinham
o prodígio de serem, ao toque, ao mesmo tempo macios e firmes, coroando-os
ainda, num requinte de perfeição, com duas delicadas protuberâncias, que
lembravam duas pequenas cerejas.
Suas curvas eram perfeitas. De cada flanco do
corpo desciam duas linhas curvas voltadas para dentro, expandindo-se somente à
altura da cintura para dar lugar a um estonteante panorama, tendo ao centro um
triângulo hermético, que guardava dentro de si todos os segredos da vida e de
sua procriação.
— Vamos, levemos já nossa invenção a Júpiter,
para que ele nos dê logo a sua aprovação!
— disse Minerva, tão confiante que já dava
por certa a aprovação de seu exigente pai. E não foi de outra maneira. Tão logo
o deus dos deuses pôs os seus olhos sobre a nova criatura, eles encheram-se de
um brilho intenso.
— Vulcano e Minerva, vocês excederam-se em
tudo o que se refere à beleza! — disse Júpiter, aplaudindo com entusiasmo a
obra que tinha diante de si.
— Batizamos ela de Pandora, meu pai — disse
Minerva. — O que acha deste nome?
— Pandora, Pandora — repetiu Júpiter,
deliciado. — Tem um som volátil, alado... Magnífico!
Antes, porém, de dispensar a criatura,
chamou-a a um canto.
— Venha cá, Pandora, tenho um presente para
você. Quero que você leve isto aos mortais como sinal de meu apreço por eles —
disse Júpiter, entregando-lhe uma caixa dourada, ricamente trabalhada com
arabescos e filigranas de prata.
Pandora arregalou os olhos ao ver diante de
si aquele presente tão magnífico. Sem poder conter-se, quis logo abrir a
maravilhosa caixa, mas foi impedida pelo autor do presente.
— Não, minha filha, não faça isto! É para ser
mantida sempre assim, hermeticamente fechada.
— Herpétia o que, poderoso deus? — disse
Pandora, com um arzinho encantadoramente confuso.
— Esqueça, querida, esqueça. Não é para ser
aberta em ocasião alguma, compreendeu?
— Sim, sim, compreendi! — disse Pandora,
semicerrando os seus soberbos olhos anis. "Por Júpiter, acho que esqueci
de um pequeno detalhe... !", pensou Minerva, consigo mesma, ao analisar
melhor a criatura.
Vulcano, no entanto, permanecia
satisfeitíssimo com a sua invenção, demonstrando ser em tudo um pai digno da
filha, menos na beleza, é claro.
— Pode ir, minha menina, vá em paz — disse
Júpiter, despedindo-se dela com um aceno.
No mesmo dia, os dois presentes chegaram às
mãos de Epimeteu, que não sabia qual deles admirar mais. Mas em breve fez logo
a sua escolha: nada podia ser mais admirável do que aquela encantadora criatura
que se chamava Pandora.
Entusiasmado, Epimeteu decidiu instalá-la em
seu quarto. Depois que ele havia se retirado, Pandora pegou sua caixa dourada e
prateada e pôs-se a examiná-la detidamente, virando-a de todos os lados. Seus
olhos azuis refletiam todo o brilho do magnífico receptáculo.
— O que haverá aí dentro? — disse baixinho,
refrescando o ar com seu hálito balsâmico.
Por várias vezes a encantadora Pandora
hesitou se abria ou não a fantástica caixa. Mas, depois, depositando o precioso objeto ao lado do
travesseiro, adormeceu profundamente.
Sonhou então que de dentro da caixa saíam,
como por mágica, cavalos alados da cor do mar e aves luminosas de diversos tons
esmeraldinos. Dos bicos prateados das gigantescas aves originava-se uma canção
de magnífica beleza, que a enterneceu até o âmago mais profundo da alma. Homens
e mulheres abraçavam-se nus, em pleno ar, ao som desta canção embriagadora, misturando-se
àquelas criaturas de tal modo, que pareciam ter asas como elas.
Despertando com aquele sonho maravilhoso,
Pandora estendeu a mão imediatamente para o seu presente. Não podendo mais
conter o seu desejo, ergueu a tampa numa volúpia insana de curiosidade que lhe
pôs na espinha um arrepio gelado.
Nem bem ergueu um pouquinho a tampa dourada,
Pandora sentiu-a ser arrebatada das mãos, caindo ao chão, longe da cama.
Assustada, ainda assim manteve o objeto preso entre as mãos. Pandora viu
escapar de dentro da caixa algo a princípio sem forma. Parecia que todos os ventos
do mundo se escapavam desordenadamente dali, na pressa da fuga. Imediatamente
um deles tomou a forma de uma caveira volátil, parecendo toda feita de cristal
e de vento. Tomando uma dimensão assustadora, a caveira aproximou seu rosto
brilhante do rosto da pobre moça, que tremia de medo. Podia sentir na face o
bafo mortalmente gelado que passava por entre os dentes de gelo, completamente
arreganhados, da horrenda caveira.
Por alguns instantes aquela face terrível a
mirou com suas órbitas vazias, estudando-a sempre com seu sorriso de vidro.
Depois seus maxilares bateram repetidas vezes, um de encontro ao outro,
aumentando cada vez mais o ritmo a um ponto tal que ela somente podia ver
aquela fileira transparente de dentes martelando-se uns aos outros, parecendo
inevitável que se fariam em pedaços diante de seus olhos atônitos.
Algo parecido a uma gargalhada escapava por
entre os rápidos intervalos das batidas dos maxilares, que ela não sabia
precisar se era um gargalhada de escárnio ou um lamento de dor.
Pandora estava prestes a desmaiar, quando a
caveira foi se tornando gasosa outra vez, transformando-se num grande e gelado
vapor que fugiu pela janela do quarto, perdendo-se no mundo.
Depois surgiram vários rostos deformados,
cobertos de pústulas, que se erguiam da caixa como se fossem o retrato horrendo
da Doença. Depois de assoprarem sobre seu rosto o bafo doentio das febres
renitentes, arremessaram-se também pela janela atrás da primeira criatura, finalmente
libertas.
Dentre as tantas criaturas que escaparam da
caixa, Pandora teve o desgosto de ver personificados todos os vícios que viriam
a acometer no futuro a alma humana.
A Inveja lhe apareceu, assim, sob a forma de
uma mulher velha, cujos cabelos finos e prateados como teias de aranha
esvoaçavam ao ar. De dentro dessa moita prateada, aranhas negras teciam
freneticamente com as patas negras mais e mais fios, de tal forma que uma nuvem
esfiapada cobria a cabeça inteira da velha hedionda. Seus olhos amarelos,
raiados de sangue, fuzilavam aquele belo rosto que, sabia, jamais teria igual.
Da boca escapou uma baba verde, que lhe escorria pelo queixo em cordas
pendentes. Com elas a velha teceu uma corda musgosa e nojenta, com a qual
envolveu o pescoço de Pandora, decidida a estrangulá-la. Algo, porém, a impediu
de completar seu ato. Dando um grande uivo de raiva, ela recuou para trás.
Depois ergueu a mão ossuda no ar e, franzindo os dedos como quem agarra algo,
sacudiu-a em direção ao seu alvo, Pandora. Depois, arremessou-se subitamente
pela janela, dando um silvo agudo e penetrante.
A Gula, sob a forma rotunda de uma mulher
imensamente nua, escapou-se também da caixa. Suas banhas e graxas sacudiam,
caindo umas por cima das outras, em grossas camadas. De toda ela escorria um
suor pegajoso, como se suasse azeite por todos os poros. Suas bochechas pareciam
prestes a explodir, e de seus olhos escorria uma graxa amarela e malcheirosa,
que ela lambia com furor assim que lhe chegava aos lábios inchados.
Pandora, embora aterrorizada, não conseguia
fechar a maldita caixa, involuntariamente fascinada com o que assistia, sem
saber como pudera desencadear tantas desgraças. Lançando-se de joelhos ao chão,
encontrou finalmente a tampa caída a um canto. Enquanto rastejava para alcançá-la
sentia rodopiar acima de si uma legião de demônios — a Avareza, a Arrogância, a
Crueldade, o Egoísmo, todos os vícios e defeitos humanos dançavam uma ciranda
infernal sobre a sua cabeça, até que, arremessando-se à caixa, conseguiu
finalmente fechá-la.
Mas o mal já estava feito. Percebendo que
nada ficara lá dentro, olhou ainda uma vez para o fundo da caixa fatídica. Um
rosto maravilhosamente belo e eternamente jovem, no entanto, a observava dali.
— Quem é você? — disse Pandora, ainda
temerosa.
— Eu sou a Esperança — disse simplesmente o
belo rosto.
Foi carregando esse valioso presente que
Pandora se apresentou diante dos homens.