O CRISTÃO E A CULTURA
Franklin Ferreira e Allan Myatt
Em conexão com a pessoa do Espírito Santo,
devemos destacar a doutrina da graça comum, obra geral do Espírito em toda a criação.
Antes, será proveitoso revisar a relação entre os cristãos e a cultura, e a
forma como isto é ilustrado na historia da igreja. Helmuth Richard Niebuhr,
juntamente com seu irmão, Reinhold, foram os líderes do equivalente americano
para a neo-ortodoxia europeia. Richard Niebuhr foi pastor da Igreja Evangélica
Reformada e, a partir de 1931, aceitou um cargo na Faculdade de Teologia de
Yale, onde permaneceu até sua morte. Em seu livro Cristo e Cultura, ele
oferece uma esquematização clássica das diferentes maneiras como os cristãos,
no decorrer dos séculos, se relacionaram com o mundo ao seu redor. Para Niebuhr,
existem cinco categorias para classificar a tensa questão de buscar relacionar
o cristão e a cultura. Estas categorias tornaram-se ferramentas indispensáveis
para descrever a forma como os cristãos encaram questões sociais, éticas,
politicas e econômicas.
1 – O Cristão
Contra a Cultura
A primeira categoria é aquela que mostra o
cristão contra a cultura. Os que seguem esta corrente enfatizam que, diante da
natureza caída da criação, é necessário que se criem estruturas alternativas
que sigam mais de perto o chamado radical do evangelho. Esta posição foi
afirmada no Didaque, na Primeira Epistola de Clemente, e nos
escritos de Tertuliano. Este último escreveu:
A filosofia é a
matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da
ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias... Ó miserável
Aristóteles! Que lhes proporcionaste a dialética, esse artífice hábil para
construir e destruir, esse versátil camaleão que se disfarçaa nas sentenças, se
faz violento nas conjecturas, duro nos argumentos, que fomenta contendas,
molesta a si mesmo, sempre recolocando problemas antes mesmo de nada resolver.
Por ela, proliferam essas intermináveis fábulas e genealogias, essas questões
estéreis, esses discursos que se alastram, qual caranguejos, e contra os quais o Apóstolo nos
adverte na sua carta aos Colossenses: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar
com suas sutilezas vazias, acordadas as tradições humanas, mas contrárias a providência
do Espírito Santo”. Este foi o mal de Atenas... Ora que há de comum entre
Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os cristãos?
Nossa formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor deve
ser buscado na simplicidade do coração. Reflitam, pois, os que andam propalando
seu cristianismo estóico ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de
Cristo?... Que pesquisa necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores da
fé, nada mais esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos
é que para a fé, não existe objeto ulterior.
Os escritos dos teólogos anabatistas, no século
XVI, apresentam o cristianismo como uma forma de viver completamente à parte da
cultura. Por exemplo, a Confissao de Fe de Schleichtheim afirma:
Quarto, unimos nossas
forças no que diz respeito a separação do mal. Devemos nos afastar do mal e da
perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos comunhão com isso e
não nos perdermos na confusão dessas abominações. Aliás, todos que não
aceitaram a fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande
abominação aos olhos de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais
do que coisas abomináveis. Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do
que o bem e o mal, crentes e incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e
fora do mundo, os templos de Deus e dos ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles
poderá ter comunhão um com o outro. Para nós, pois, é óbvio o imperativo do
Senhor, pelo qual nos ordena que nos afastemos e nos mantenhamos longe dos
maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos seus filhos e filhas. Além
disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno egípcio, para
não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. (...)
Devemos nos afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso
não passa de abominações, que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus
Cristo, o qual nos libertou da escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos
tornou aptos para o serviço de Deus, por meio do Espírito que nos outorgou.
2 – O Cristão
da Cultura
A segunda categoria mostra o cristão da
cultura, onde os ensinos do evangelho têm íntima relação com as estruturas ocidentais, e o
cristão se acomoda à cultura. Apesar das objeções que são comumente lançadas a esta solução,
ela tem exercido forte influência na história da igreja. Os gnósticos, Abelardo de Paris e os
teólogos liberais do seculo XIX e XX esposaram esta posição. A igreja
evangélica na Alemanha, por influência deste entendimento, trocou seu nome para Igreja do Reich, e seus pregadores
juraram obediência a Hitler. Em alguma medida, o próprio fundamentalismo americano acabou
espelhando esta posição, garantindo os valores e pressuposições básicas da cultura
americana. Horton escreve:
No evangelicalismo
norte-americano, o cristianismo cultural produziu uma confiança inusitada na
capacidade do espírito americano de conseguir fazer o que quisesse. (...) É por
isso que o arminianismo dá tão certo nos Estados Unidos e o calvinismo é tão
desprezado. O calvinismo jamais servirá ao individualista idealista ou otimista
que acredita haver algo de especial no caráter nacional que predisponha um
pecador a tornar-se um santo através do trabalho duro. Na teologia reformada, é
Deus quem julga e justifica; no arminianismo, o homem é quem decide e se ergue.
3 – O Cristão
Acima da Cultura
O cristão acima da cultura integra a terceira
categoria analisada. Este é o
conceito católico, influenciado principalmente por Clemente de Alexandria e
Tomás de Aquino. Esta posição busca uma unidade entre o cristão e a cultura,
onde toda a sociedade aparece hierarquizada, unida ao Senhor Deus. O problema é
a institucionalização da igreja e do evangelho e a absolutização do que é
condicionado culturalmente. Quando isso ocorre, volta-se para a segunda
categoria, que é o cristão da cultura.
4 – O Cristão
e a Cultura Permanecem em Paradoxo
A quarta categoria é a posição comumente
associada a Martinho Lutero, em que o cristão e a cultura permanecem em paradoxo.
Esta posição mantém firmemente o entendimento bíblico da queda e da miséria do
pecado, e o chamado para se lidar com a cultura. A relação do cristão com a
cultura é marcada por uma tensão dinâmica entre a ira e a misericórdia. “Lutero
enfatizou este tema com sua doutrina dos ‘dois reinos’: a mão esquerda,
mundana, segura a espada do poder no mundo, enquanto a mão direita, celeste,
segura a espada do Espírito, a Palavra de Deus. Não se pode tentar coagir a fé,
nem se pode tentar acomodar a fé aos modos seculares de pensamento”.
5 – O Cristão
Como Agente Transformador da Cultura
A quinta categoria mostra o cristão como
agente transformador da cultura. Sua compreensão é de que a cultura deve ser
levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem desconsiderar a queda e o pecado, mas
enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que estão nesse grupo de
cristãos enfatizam que o objetivo da redenção é transformar a cultura. Por mais
iníquas que sejam certas instituições, elas não estão fora do alcance da soberania
de Deus. Agostinho, João Calvino, John Wesley, Jonathan Edwards e Abraham
Kuyper são alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de transformação
da cultura.
LIVRO PARA CONSULTA
FERREIRA,
Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: Uma análise histórica, bíblica e apologética para o
contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2008. p. 669-672.