OS CRISTÃOS E A CULTURA
Rev. Augustus
Nicodemus Lopes
O relacionamento
dos cristãos com a cultura na qual estão inseridos sempre representou um grande
desafio para eles. Opções como amoldar-se, rejeitar a cultura, idolatrá-la ou
tentar redimi-la têm encontrado adeptos em todo lugar e época. Em nosso país, com
uma cultura tão rica, variada e envolvente, o desafio parece ainda maior nos
dias atuais.
Existem muitas
definições disponíveis e parecidas de cultura. No geral, define-se como o
conjunto de valores, crenças e práticas de uma sociedade em particular, que
inclui artes, religião, ética, costumes, maneira de ser, divertir-se,
organizar-se, etc.
Os cristãos
acrescentam um item a mais a qualquer definição de cultura, que é a sua
contaminação. Não existe cultura neutra, isenta, pura e inocente.
Ela reflete a situação moral e espiritual das pessoas que a compõem, ou seja,
uma mistura de coisas boas decorrentes da imagem de Deus no ser humano e da
graça comum, e coisas pecaminosas resultantes da depravação e corrupção do
coração humano. Toda cultura, portanto, por mais civilizada que seja, traz
valores pecaminosos, crenças equivocadas, práticas iníquas que se refletem na
arte, música, literatura, cinema, religiões, costumes e tudo mais que a compõe.
Não é de se
estranhar, portanto, que aqueles cristãos que levam a Bíblia a sério sempre
tiveram uma atitude, no mínimo, cautelosa em relação à cultura, por perceberem
nela traços da corrupção humana - ou seja, do mundo.
Ao mesmo tempo em
que a Bíblia define o mundo de maneira negativa, ela admite que existem coisas
boas na sociedade em decorrência do homem ainda manter a imagem de Deus – em
que pese a Queda – e em decorrência de Deus agir na humanidade em geral de
maneira graciosa. Deus concede às pessoas, sendo elas cristãs ou não, capacidade,
habilidades, perspicácia, criatividade, talentos naturais para as artes em
geral, para a música – enfim, aquilo que chamamos de graça comum. É
interessante que os primeiros instrumentos musicais mencionados na Bíblia
aparecem no contexto da descendência de Caim (Gênesis 4:21) bem como os
primeiros ferreiros (4:22) e fazedores de tendas (4:20). Paulo conhecia e citou
vários autores da sua época, que certamente não eram cristãos (Epimênides, Tt
1:12; Menander, 1Cor 15:32; Aratus, Acts 17:28). Jesus participou de festas de
casamento (João 2) e Paulo não desencorajou os crentes de Corinto a participar
de refeições com seus amigos pagãos, a não ser em alguns casos de consciência
(1Co 10:27-28).
Portanto, a grande
questão sempre foi aquela do limite – onde eu risco a linha de separação? Até
que ponto os cristãos podem desfrutar deste mundo, até onde podem se amoldar à
cultura deste mundo e fazer parte dela?
Dá para ver porque
ao longo da história a Igreja cristã foi considerada algumas vezes como obscurantista,
reacionária, um gueto contra cultural. Nem sempre os seus inimigos perceberam
que os cristãos, boa parte do tempo, estavam reagindo ao mundo, àquilo que
existe de pecaminoso na cultura, e não à cultura em si. Quando missionários
cristãos lutam contra a prática indígena de matar crianças, eles não estão
querendo acabar com a cultura dos índios, mas redimi-la dos traços que o pecado
deixou nela. Eles estão lutando contra o mundo. Quando cristãos criticam
Darwin, não estão necessariamente deixando de reconhecer sua contribuição para
nosso conhecimento dos processos naturais, mas estão se posicionando contra a
filosofia naturalista que controlou seu pensamento. Quando torcem o nariz para
Jacques Derrida, não estão negando sua correta percepção das ambiguidades na
linguagem, mas sua conclusão de que não existe sentido num texto.
É preciso
reconhecer que nem sempre os cristãos conseguiram perceber a distinção entre
mundo e cultura. Historicamente, grupos cristãos têm sido contra a ciência, a
arte, a música e a literatura em geral, sem fazer qualquer distinção. Todavia,
estes grupos fundamentalistas não representam a postura cristã para com a
cultura e nem refletem o ensino bíblico quanto ao assunto. Os reformados, em
particular, caracteristicamente sempre se mostraram sensíveis às artes e viam
nelas uma manifestação da graça comum de Deus à humanidade. Apreciavam a
pintura, a música, a poesia e a literatura.
O grande desafio
que Jesus e os apóstolos deixaram para os cristãos foi exatamente este, de
estar no mundo, ser enviado ao mundo, mas não ser dele (Jo 17:14-18). Implica
em não se conformar com o presente século, mas renovar-se diariamente (Rm
12:1-3), de não ir embora amando o presente século, como Demas (2Tm 4:10). É
ser sal e luz.
Fonte: http://www.mackenzie.br/homiliadepscoa20110.html